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Razões pelas quais precisamos nos mover em direção a uma compreensão de não-violência inspirada em king – Kazu Haga

17 de fevereiro de 2020
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Kazu Haga é pesquisador em não-violência e justiça restaurativa, fundador da East Point Peace Academy, na Califórnia, EUA. Neste artigo, ele aborda aspectos fundamentais da não-violência da linhagem kinguiana (inspirada no trabalho de Martin Luther King Jr), entre eles, as próprias noções de não-violência e paz.

 

Original em inglês disponível aqui.

Tradução: Angelica Rente e Fernando Baganha

 

Na não-violência kinguiana, uma filosofia desenvolvida a partir dos ensinamentos de Martin Luther King Jr, há uma distinção entre a não violência escrita sem hífen e a não-violência escrita com hífen. “Não violência” refere-se, essencialmente, a duas palavras: “sem” e “violência”. Quando escrita dessa forma, ela só descreve a ausência da violência. Enquanto eu estiver “sendo não violento”, estou praticando a não violência. E essa é a maior incompreensão em relação à não-violência que existe.

 

Eu vivo em um dos bairros de população mais diversificada em Oakland, com uma mistura equilibrada de residentes negros, latinos e asiáticos. Um dia, eu estava tirando um cochilo no meu apartamento, quando fui acordado por um casal gritando um com o outro, abaixo da minha janela, que fica no segundo andar. Eu resolvi me levantar da cama e olhar, e vi uma mulher caída no chão, apanhando, chorando e pedindo socorro. Eu dei um salto, calcei meus sapatos e corri escada abaixo. Quando cheguei, por volta de 15 vizinhos também haviam ido até lá, mas estavam apenas assistindo a mulher ser espancada, sem fazer nada para ajudá-la. Eu consegui interromper a briga e separar os dois; um deles furioso, a outra, em lágrimas.

 

Meus vizinhos, que estavam apenas assistindo, estavam praticando a “não violência sem hífen”. Eles não estavam socando ou chutando ninguém, estavam sendo explicitamente não violentos. Então, podemos ver, de uma perspectiva kinguiana, a diferença que esse pequeno hífen faz. Vemos que uma enorme incompreensão pode ser provocada se pensarmos que não-violência se trata apenas da ausência da violência. Se definirmos a não-violência como “não violenta”, então poderemos nos esconder atrás de seu véu, enquanto continuamos compactuando com a violência.

 

É fácil ser um mero observador. Vemos o crescente número de pessoas morando nas ruas e viramos para o outro lado. Vemos pessoas negras desarmadas sendo mortas pela polícia e culpamos as vítimas. Ouvimos sobre os altos índices de suicídio entre a juventude LGBTQ+ e não fazemos nada, ou fazemos muito pouco, em relação a isso. Lemos relatórios sobre a crise climática, mas deixamos que a próxima geração resolva isso. Assistimos nossas comunidades e a própria terra serem violadas cotidianamente, e apenas nos reunimos e assistimos.

 

A não-violência não fala do que não devemos fazer. Ela nos indaga o que podemos fazer em relação à violência e à injustiça que testemunhamos nos nossos corações, nas nossas casas, nossos bairros e na sociedade em geral. Ela propõe um olhar proativo para a violência e a injustiça. A não-violência propõe ação, não inação.

 

Paz Negativa

 

Essa incompreensão em relação à não-violência leva a uma compreensão perigosa da paz. Da mesma forma que em relação à primeira, evocar uma compreensão errônea da paz pode ser um ato de violência. Em 9 de fevereiro de 1956, uma mulher chamada Autherine Lucy se tornou a primeira estudante negra matriculada na Universidade do Alabama. Assim que ela chegou lá, houve uma série de protestos. Uma multidão de mais de mil pessoas cercou o carro onde ela estava e alguns manifestantes, inclusive, subiram no teto dele.

 

Em resposta, a universidade expulsou Lucy, alegando que sua presença era uma ameaça à segurança da instituição. No dia seguinte, os protestos cessaram. O jornal local publicou uma manchete que dizia, “O clima está tranquilo em Tuscaloosa hoje. Há paz no campus da Universidade do Alabama”.

 

Havia paz. Mas de que tipo de paz esse jornal estava falando?

Um mês depois, King fez um sermão em resposta a isso, chamado “Quando a Paz se Torna Ofensiva”, no qual dizia que a paz que os jornais descrevem não é uma paz verdadeira. Ele afirmou que essa é “o tipo de paz que todos os homens de boa vontade odeiam. É o tipo de paz ofensiva. É o tipo de paz que fede para as narinas do Deus Todo Poderoso”. Palavras fortes de um homem que ganharia o Prêmio Nobel da Paz. Quando King falou de uma “paz diluída até o ponto de uma complacência estagnada”, ele estava falando do que o educador pela paz Johan Galtung chama de “paz negativa”, que descreve a ausência de tensão em prejuízo da justiça. King continuou, dizendo, “a paz não é meramente a ausência de conflito, mas a presença de justiça”.

 

Com frequência, pensamos na paz como sendo calma e tranquila. Conjuramos imagens de pores-do-sol numa praia tropical, meditação numa floresta ao lado de um regato, incenso e velas perfumadas. Isso pode ser tão problemático quanto pensar que não-violência tem a ver com não sermos violentos. Eu garanto que, no momento que a primeira bomba atômica foi lançada em Hiroshima, as coisas ficaram muito quietas. Será que foi criada paz? Se alguém estiver gritando na minha cara e eu interromper essa pessoa dando um soco na sua cara e a deixando inconsciente, eu criei paz?

 

É fácil, a curto prazo, varrer os problemas para baixo do tapete e concordar com uma paz negativa, barata, mas insustentável.

 

Por mais ridículo que soe, é assim que a nossa sociedade tenta criar paz, justamente porque nossa compreensão dela é tão grosseiramente falha. É o que nos permite justificar fazer uma guerra para que a paz aconteça. Se matarmos todos os terroristas, teremos paz. Essa compreensão errônea justifica a militarização da polícia. Se prendermos todos os manifestantes, nossas ruas ficarão tranquilas e pacíficas. Ela justifica o encarceramento em massa. Se prendermos todas as pessoas ruins, teremos bairros pacificados.

 

A paz negativa prevalece em muitos de nossos relacionamentos, lares, locais de trabalho, comunidades de fé e instituições. Este é o tipo de paz negativa criada e sustentada por um entendimento ambíguo e não expresso de que o conflito emergente não é bem-vindo. Minha terra natal, o Japão, lida com este tipo de paz negativa em nível nacional. Culturalmente, tendemos a ter aversão à conflitos. Somos ensinados que é honroso segurar tudo, manter a cabeça abaixada e aguentar. É considerado rude trazer assuntos difíceis que podem criar tensão, pois estaríamos colocando um fardo sobre os outros. É falta de educação. Então, nós aguentamos.

 

O Japão talvez seja uma das nações mais seguras na Terra em termos de crimes violentos e, olhando de fora, parece pacífico. Porém, também temos uma das taxas de suicídios mais elevadas do mundo. Aprender a suportar os desafios da vida com dignidade pode ser uma marca absolutamente positiva, mas quando isto resulta em uma nação de pessoas tentando simplesmente aguentar traumas, isolamento e uma vida sem propósito – quando pessoas são ensinadas a não falar sobre injustiça e opressão e a “ficar em seu lugar” –  é repressão. Isso é a paz negativa.

 

Uma vez ouvi alguém descrever este fenômeno como “a tirania da civilidade”. Nos ambientes de trabalho corporativos nos falam para não falar sobre assédio sexual porque isto “criaria conflito”. Em nossas igrejas nos falam para não questionar o uso dos recursos financeiros da igreja porque “isto é inadequado”. Então vamos em frente fingindo que não há problemas. Aguentando.

 

Vemos isto em todos os lugares na nossa sociedade hoje. Racismo? Não é mais um problema; as únicas pessoas que ainda falam de racismos são os racistas! Patriarcado? Veja as mulheres liderando as grandes corporações agora! Pobreza? A economia nunca esteve melhor! Olhe para o mercado de ações!

 

No curto prazo é mais fácil varrer as questões para debaixo do tapete e se acomodar com uma paz negativa barata, ainda que, no final das contas, ela seja insustentável. É uma conversa completamente diferente trabalhar proativamente contra a violência na direção de construir uma paz positiva que inclua justiça para todos. Isto exige de nós levantarmos o véu da injustiça e trabalharmos para reparar os danos.

 

Complacência perturbadora

 

Quando associamos paz apenas com a ausência de tensão, na prática nos afastamos da paz positiva que King pedia. Em sua “Carta da Prisão de Birmingham”, ele escreveu, “Minha menção à criação de uma tensão como parte do trabalho de resistência não-violenta pode parecer um tanto chocante. Porém, confesso que não receio pela palavra ‘tensão’. Eu me oponho seriamente a tensão violenta, mas existe um tipo de tensão não-violenta construtiva que é necessária para o crescimento.

Em 2015, como uma resposta a morte de Freddie Gray pela polícia, a cidade de Baltimore irrompeu em revolta. Isto incluiu o envolvimento de alguns membros da comunidade de Baltimore em atos de violência. Prédios foram incendiados. As janelas dos carros foram quebradas. Ray Lewis, um ex-astro do Baltimore Ravens, implorou aos manifestantes para “pararem a violência”.

 

Quando usamos a não-violência para confrontar a violência e a injustiça, não estamos perturbando a paz, estamos perturbando a complacência.

 

Como um instrutor de não-violência, não acho necessariamente que incendiar prédios seja a tática mais efetiva para criar mudança duradoura. E ao mesmo tempo, fiquei desapontado com o pedido de Lewis. Existe uma grande ironia no seu pedido para os manifestantes “pararem a violência”. Porque isto era exatamente o que os manifestantes estavam tentando fazer. A revolta em Baltimore não era apenas sobre a morte de Freddie Gray. Era uma resposta a 500 anos de violência contra os afrodescendentes neste país. As pessoas saíram nas ruas porque elas estavam cansadas da violência perpetrada contra suas comunidades por tanto tempo.

 

King certa vez disse, “A revolta é a linguagem de quem não foi ouvido.” Tumultos, no final das contas, são um clamor por paz das comunidades que nunca a tiveram. Condenar pessoas oprimidas por revidarem contra séculos de violência é ignorar o contexto maior de violência à qual elas estão reagindo. É a resposta inevitável de uma comunidade cuja dor não foi reconhecida por séculos.

 

Os pedidos para que os manifestantes do “Vidas Negras Importam” fossem pacíficos após as últimas mortes causadas pela polícia pode ser uma forma de repressão. É um pedido por paz que funciona como um eufemismo para “parem de reclamar” e “fiquem no seu lugar”. Paz é confusão. A justiça é barulhenta. Se esperamos que criar a paz em uma sociedade tão violenta como os Estados Unidos seja um processo ordenado, calmo e tranquilo, sofreremos um despertar brutal.

 

A construção de paz real exige que nós aprendamos a ter as conversas que não queremos ter com nossas famílias e nossa sociedade. Isso pode requerer que façamos intervenções, fechemos rodovias ou realizemos outros atos de resistência. Ao fazer estas coisas, não estamos criando conflito. Estamos apenas revelando o conflito que já existe para que ele possa ser abordado.

 

King foi preso 29 vezes em sua curta vida. Muitas destas vezes, ele foi acusado de “perturbar a paz”. Pense sobre isto por um momento. Deixe isto penetrar em você.

 

Isto ainda acontece hoje para muitos ativistas. Quando usamos a não-violência para confrontar a violência e a injustiça, não estamos perturbando a paz, estamos perturbando a complacência. Estamos perturbando a normalização da violência. Estamos perturbando a paz negativa. Quando acampamentos de sem-teto se tornam algo normal, precisamos perturbar isto. Quando aceitamos uma taxa de 50% de abandono nas escolas de ensino médio nas cidades, precisamos problematizar isto. Quando investimos em um sistema prisional que produz uma taxa de 83% de reincidência, precisamos denunciar isto. Quando interesses corporativos estão destruindo nosso planeta e colocando em perigo a vida das gerações no futuro, precisamos perturbar isto.

 

A acusação de “perturbar a paz” deveria ser varrida dos códigos criminais deste país até que nós finalmente saibamos viver em uma paz positiva de verdade. Primeiro, não podemos perturbar algo que não existe. Quando nos engajamos no trabalho duro da não-violência e da mudança social, não estamos perturbando a paz. Estamos lutando por ela.