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COVID-19: Uma Aproximação Crítica a Contribuição de Bruno Latour by Ihering Guedes Alcoforado

30 de maio de 2020
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“[…]a exigência de proteger os franceses para o seu próprio bem contra a morte é infinitamente mais justificada no caso da crise ecológica do que no caso da crise sanitária, porque se trata aí literalmente de todo o mundo, e não apenas de alguns milhares de humanos — e não por um tempo, mas para sempre.”[LATOUR, 2020b]

Bruno Latour alinha-se com os que colocam o núcleo da problemática do COVID-19 na pós pandemia. Lança um olhar de longo alcance temporal, ou seja, a atual pandemia é apenas o anuncio de crises vindouras associadas a poluição e degradação ambiental que convergem na mudança climática e a consequente crise ecológica.

A visão de Bruno Latour parte de uma subordinação da crise sanitária à crise ambiental, de maneira que para ele a intervenção do vírus pode servir como “um ensaio geral para a próxima crise, aquela em que a reorientação das condições de vida se apresentará a todos e para todos os detalhes da vida cotidiana que teremos que aprender a selecionar com cuidado”. Ele, como muitos, (julga necessário testar a hipótese) supõe que a crise sanitária nos prepara, induz e incita a se preparar para as mudanças climáticas. [LATOUR, 2020b]

Para ele, o vírus é apenas “um dos elos de uma cadeia”, e, considera que cada um deles contam em diferente grau para “definir o grau de virulência do agente infeccioso.” Ou seja, ele não considera que a pandemia seja um fenômeno natural, pois o vírus não age da mesma maneira em todas localidades.[LATOUR, 2020b]

A partir dessa perspectiva socio-ecológica relativiza a crise sanitária, e, no seu diagnóstico da crise sanitária enfatiza o enfrentamento das causas profundas as quais localiza na mudança climática, o que o leva a deslocar o virus como o agente patológico, colocando no seu lugar os humanos.

A visão sócio-ecológica construtivista de Bruno Latour não só do vírus, mas também da pandemia como vimos acima, desdobra-se numa orientação esquerdista que se expressa de forma emblemática no reconhecimento da necessidade de inventar um socialismo que discuta a produção em si mesma, indo além da mera redistribuição dos frutos do progresso. [LATOUR, 2020a]

De forma que, para ele a solução envolve um novo homem e um novo Estado, esquecendo das novas instituições e das novas organizações que agasalha a ambos. Nesta direção entende que, a despeito do inconveniente de momento projetar-se no pós-crise, admite que “[…] é justamente agora que temos que lutar para que a retomada econômica, uma vez que a crise tenha passado, não traga de volta o mesmo antigo regime climático contra o qual tentávamos até este momento, em vão, lutar”.

Ou seja, em função da sua perspectiva sócio-ecológica construtiva, ele concebe a crise sanitária no bojo da crise ambiental, mais ampla: “[…] crise da saúde está inserida no que não é uma crise — sempre temporária -, mas, sim, uma mutação ecológica duradoura e irreversível. Se temos a oportunidade de “sair” da primeira, não temos sequer uma alternativa para “sair” da segunda”. [LATOUR, 2020a]

É esse desafio que Bruno Latour encara. Mas, como as duas crises não estão na mesma escala espaço-temporal, seu programa propõe “articular uma com a outra”, tendo como objetivo “descobrir outros meios de entrar na mutação ecológica e, é, com essa preocupação que reconhece no coronavirus algumas lições: a primeira é que é possível “em algumas semanas, suspender em qualquer lugar e simultaneamente um sistema econômico que até agora nos disseram que era impossível desacelerar ou redirecionar”; ou seja, o cornonavirus nos mostrou que é possível “não apenas de parar, mas de parar por completo”. A segunda lição é a descoberta que já havia no sistema econômico mundial, escondido de todos, um sinal de alarme em vermelho vivo. “

Os fatos acima leva Bruno Latour reconhecer que estamos numa encruzilhada que aponta em duas direções. Na direção progressista “ apenas os ambientalistas veem essa pausa repentina no sistema de produção globalizado como uma oportunidade formidável para avançar em seu programa de aterrissagem. Na outra direção, a dos globalizadores, ele reconhece que os atores veem não só “uma oportunidade formidável de romper ainda mais radicalmente os obstáculos que restavam para a sua fuga do mundo”, mas principalmente a “[…]a oportunidade de se livrar dos restos mortais do Estado provedor […], em especial sua rede de segurança social.[LATOUR, 2020 a]

Em suas palavras:

E é aqui onde devemos agir. Se a oportunidade aparece para eles, isso se abre para nós também. Se tudo estiver parado, tudo pode ser questionado, modificado, selecionado, classificado, interrompido para o bem ou, ao contrário, acelerado. O momento de fazer o inventário anual é agora. O pedido do senso comum: “Vamos reativar a produção o mais rápido possível”, tem que ser respondido com um grito: “Nem pensemos nisso!”. A última coisa que devemos fazer é retomar, da mesma maneira, tudo o que fazíamos antes.”[LATOUR, 2020 a]

Em outras palavras, para Bruno Latour “não se trata mais de retomar ou modificar um sistema de produção, mas de sair da produção como o princípio único de relação com o mundo. Não se trata de uma revolução, mas de uma dissolução, pixel a pixel”.[LATOUR, 2020 a]

O problema é o de sempre, Como operar ? como sair do papel e adentrar nas políticas públicas, seja esta estatal, seja privada. Da proposta de Bruno o máximo que se pode dizer é que ingênua tanto no geral, como se pode inferir da afirmação abaixo:

“Se começarmos, cada um por nossa conta, a fazer esse tipo de pergunta (É útil prolongar esse modo de produzir e vender…) sobre todos os aspectos do nosso sistema de produção, nos tornaremos efetivos ‘interruptores da globalização’, […]O que o vírus obtém com a humilde cuspidela de boca em boca — a suspensão da economia mundial -, começaremos a imaginar através de pequenos gestos insignificantes, os nossos também, um após o outro, ou seja, a suspensão do sistema de produção.[LATOUR, 2020a]

Como na sua tentativa de qualificação por meio do que chama de uma ferramenta para ajudar no discernimento dos procedimentos de suspensão da economia mundial, os quais surpeendentemente são localizados na esfera discricionário do individuo, e, não do Estado. [2]

De maneira que questão central dos que se debraçam sobre a crise sanitária a partir da crise ambiental e, vocalizada entre outros por Françoise Grenen membro do IPCC permanece na estaca zero:

“A questão é saber o que vamos fazer para reinventar esse modelo. As medidas econômicas e as ajudas que serão concedidas às empresas depois da crise podem ser um vetor de transformação e não servir apenas para compensar as perdas para retornar à situação anterior à crise. O Estado vai se tornar um planificador econômico e investir centenas de bilhões de euros. Ele poderia aproveitar a oportunidade para avançar rumo a uma economia descarbonizada. Vale a pena salvar todas as companhias aéreas, especialmente as de baixo custo? Vamos salvar as companhias de petróleo? Esta é uma oportunidade ímpar para fazer uma verdadeira transição ecológica.” [GRENEN, 2020]

Enfim, Bruno Latour não aponta nenhuma pista no que se refere ao ambiente institucional e aos arranjos organizacionais necessários ao agasalhamento desse novo sistema de produção, em especial no que se refere ao seu carater socialista que toma impulso a partir da discussão da produção em si mesma, indo além da mera redistribuição dos frutos do progresso. [LATOUR, 2020a]

O que se registra no seu texto são apenas desejos e blá e blá, a exemplo dos seus “gestos-barrerias’ que abole o protagonismo do Estado e entroniza o individuo. Operacionalização nada, nem mesmo uma réplica do New Green Deal, o que é surpreendente dado que, na sua condição de um dos líder da nova sociologica do conhecimento francês é familiar como os mecanismo socio-tecnico de construção institucional, pelo menos no que concerne a tecelagem do raciocínio jurídico na fabricação do direito.[LATOUR, 2019] O resultado deste nível de abstração que é comum entre seus pares (os que subordinam a crise sanitária ao crise ambiental) é a ausência de subsídio que alimente o debate sobre o perfil das atividades que deverão iniciar a retomada e, cujo telos até o momento aponta para o retorno do velho normal com nenhuma mudança estrutural.

Donde indagarmos: Por que não estimularmos um debate que problematize a retomada das atividades econômica e tenha como pano de fundo as possibilidades e limites do New Green Deal do ponto de vista do ambiente institucional e do arranjo organizacional e que explore as lições da etnologia jurídica.

NOTAS

[1] Bruno Latour entende que esses globalizadores estão cientes da mutação ecológica e que todos os seus esforços, durante cinquenta anos, foram para negar a importância da mudança climática, ao mesmo tempo em que escapam de suas consequências, construindo bastiões fortificados de privilégios que devem ser inacessíveis a todos que precisam. Não são ingênuos o suficiente para acreditar no grande sonho modernista da distribuição universal dos “frutos do progresso”, mas o que, sim, é novo é que são francos o suficiente para nem sequer dar essa impressão. “

[2] Uma ferramenta para ajudar no discernimento

Como sempre é bom relacionar um argumento a exercícios práticos, propõe-se aos leitores que tentem responder a esse pequeno inventário. Será ainda mais útil se for abordado a partir de uma experiência pessoal, vivida diretamente. Não se trata apenas de expressar uma opinião que venha à sua mente, mas de descrever uma situação e talvez prolongá-la com uma pequena pesquisa. Apenas se continuar, se encontrar uma maneira de combinar as respostas para compor a paisagem criada pela sobreposição de descrições, isso levará a uma expressão política encarnada e concreta. Em nenhum caso se obterá antes.

Atenção: isto não é um questionário, não se trata de uma sondagem. É um auxílio à autodescrição.

Trata-se de fazer uma lista das atividades que se sente privado pela crise atual e que dão a você a sensação de manter em espera suas condições essenciais de subsistência. Para cada atividade, pode-se indicar, caso deseje, que a mesma fosse retomada exatamente (como antes), melhor ou que não se retome em absoluto. Responda às seguintes perguntas:

Pergunta 1: Quais são as atividades atualmente suspensas que desejaria que não fossem retomadas?

Pergunta 2: Descreva:

a) as razões pelas quais considera essa atividade prejudicial/supérflua/perigosa/incoerente;

b) em que seu desaparecimento/colocada em espera/substituição converteria outras atividades que prioriza como mais fáceis e mais coerentes (escrever um parágrafo diferente para cada uma das respostas incluídas na lista feita na pergunta 1);

Pergunta 3: Que medidas você defenderia para que os operários/empregados/agentes/empreendedores que não pudessem continuar sua atividade vissem facilitada a transição para outras atividades?

Pergunta 4: Quais são as atividades atualmente suspensas que desejaria que fossem desenvolvidas/retomadas ou aquelas que deveriam ser inventadas em substituição?

Pergunta 5: Descreva:

a) por que considera essa atividade positiva;

b) como essa atividade contribui para que sejam mais fáceis/harmoniosas/coerentes outras atividades que, sim, favorece; e

c) permitem combater aquelas que você avalia como desfavoráveis? (escrever um parágrafo diferente para cada uma das respostas incluídas na lista feita na pergunta 4);

Pergunta 6: Que medidas defenderia para ajudar os operários/empregados/agentes/empreendedores a adquirir as capacidades/meios/renda/instrumentos que permitam retomar/desenvolver/criar esta atividade?

(Em seguida, encontre uma maneira de comparar sua descrição com a de outros participantes. A compilação de respostas, seguida de sua superposição, deverão desenhar, gradualmente, uma paisagem composta de linhas de conflito, alianças, controvérsias e oposições).

BIBLIOGRAFIA

GEMENNE, François., (2020) CORONAVIRUS: “Esta é uma oportunidade ímpar para fazer uma verdadeira transição ecológica” REVISTA IHU. Disponibilizado em 22 de março e consultado em 28 de maio de 2020. https://bit.ly/3d644Jo

LATOUR, Bruno, A Fabricação do Direito. Um estudo de etnologia jurídica. São Paulo: Ed. UNESP, 2019

LATOUR, Bruno., (2020 a) Imaginar os gestos-barreiras contra o retorno da produção anterior à crise IN Revista IHU, 7 de abril de 2020 e consultado em 25 de maio de 2020

LATOUR, Bruno (2020b) A crise sanitária incita a nos preparar para as mudanças climáticas IN Revista IHU On-Line, https://bit.ly/2XF3Q5B. Disponibilizado em 27 de março 2020 e consultado em 27 de 05 de 2020